17 fevereiro 2006

Elomar, um brasileiro

Leio entrevista do compositor Elomar à Agência Carta Maior, focando o oportuno relançamento de alguns de seus discos pela Kuarup.

Já faz algum tempo que não o vejo. Pessoalmente, desde o dia 17 de janeiro de 2003. Lembro-me bem porque almoçamos juntos nesse dia em que meu filho completou três anos.

Depois nos falamos por telefone algumas vezes e quase fui ao seu último show há poucos meses, em Campinas.

Nesta viagem musical que venho fazendo há tantos anos, merece capítulo especial nossa convivência, ainda que por período menor do que eu desejasse em se tratando de verdadeiro mito a habitar meu imaginário desde a adolescência.

Não só aqui em SP, onde produzi uma de suas raras apresentações, no Sesc Ipiranga em 2000, mas, principalmente, devido a uma fantástica e inesquecível viagem ao sertão baiano que fiz em julho de 2002, tendo o privilégio de ser recebido e ciceroneado por ele.

Montávamos juntos, na ocasião, um projeto maluco para um desses concursos da Petrobras. A idéia era gravar em CD/DVD uma de suas óperas (A Carta) num palco montado à beira do lago que dá nome à cidade caatingueira de Lagoa Real, distante cerca de três horas e meia de Vitória da Conquista, sua cidade, com tudo o que tínhamos direito: orquestra, cenários, figurinos, cantores líricos, luz, som, enfim, o que fosse necessário.

Por mais que parecesse loucura, estava tudo rigorosamente organizado e planejado. Levaríamos músicos de SP de avião até Salvador; depois uma semana de ensaios em Lagoa, onde a prefeitura já tinha formalizado documento garantindo palco profissional, alojamento para 130 pessoas com alimentação, segurança e o que mais fosse preciso. Já o prefeito de Vitória da Conquista assinara outro documento prometendo vários ônibus para trazer a equipe de Salvador, além de out-doors para divulgação. De Salvador, viriam também cenotécnico, cenógrafo e figurinista locais, um bando de gente altamente profissional que se candidatou na primeira hora, assim que soube da possibilidade e não quis ficar de fora de jeito nenhum. Seu filho, o maestro João Omar, seria o regente escolhido a avalizado pelo exigente pai.

Estava tudo orçado: unidade de som, de gravação, equipe de filmagem, cachês, o escambau.

Caprichei na apresentação, recheei com fotos, releases de todo mundo, depoimentos de maestros consagrados, opiniões de intelectuais, texto de Vinícius, enfim, tudo o que se poderia imaginar fosse possível obter para realizarmos o primeiro registro audiovisual digital de uma ópera legitimamente brasileira, encenada no local mais original possível, ainda que inusitado num primeiro momento.

Depois, lançaríamos os produtos pela Lua, que custeou minha viagem e outras despesas com a montagem do projeto.

Como já devem imaginar, não fomos selecionados. Não descobri porque, já que todos afirmavam ser a chamada "barbada". Talvez pelo alto custo, no limite do concurso. Talvez por ter feito tudo sem qualquer caminho tortuoso, quer dizer: montado o projeto e mandado pelo correio, simplesmente. Pelo que consegui apurar, não foi nem pré-selecionado na primeira peneira de 80 projetos.

Mas está guardadinho, quem sabe? Tá tudo ali, é só atualizar os valores e contar novamente com os apoios das prefeituras locais. Hora dessas inscrevo-o novamente.

Na época, a não-aprovação depois de tanto trabalho e igual expectativa levou-me um período de desânimo total, quase larguei tudo em termos de produção musical.

Mas a viagem ao sertão nunca mais saiu da memória, nem perdeu intensidade afetiva.

Três dias atordoantes. As cachaças sorvidas na Casa dos Carneiros (aquela mesma, da canção), onde pernoitei; as histórias contadas por seu criador e as discussões pretensamente filosóficas; a carne de bode com status de maior iguaria elomariana; a lua cheia ao chegar em Lagoa Real; a paisagem caatingueira com a Chapada Diamantina ao fundo; o sertanejo legítimo ainda morando em casario de pau-a-pique desprovido de eletricidade, quase sem contato com a cidade - de uma pureza absoluta.

A dimensão de um Brasil profundo, entre o norte de Minas e o sudoeste da Bahia. Descrito surrealmente por Guimarães Rosa e ali, diante dos meus olhos.

O mestre também ficou pra lá de decepcionado com o resultado. Mas, de certa maneira, já está meio acostumado com essas coisas. Desde que decidiu não mais compor canções como as que os tornaram conhecido e respeitado, dedicando-se única e exclusivamente a registrar suas óperas, ele tem levado muitos “nãos”.

Volta e meia faz show (“espetáculo”, como prefere) onde mescla algumas canções exigidas pelos fãs com trechos líricos. É com esse formato, que entitulou de “Cancioneiro e Líricas”, que ainda se mostra ao seu público pra não perder a prática.

Elomar Figueira Mello é único. Arquiteto e compositor, popular e erudito, cria bodes na caatinga e descola a Bahia do recôncavo-afro com sua música de raiz ibérica.

É radical, polêmico, ranzinza. Ultranacionalista, impaciente, temperamental. Mas ao mesmo tempo amigo, generoso, caridoso, pai e marido exemplares.

Um gênio, daqueles que serão valorizados somente depois que se forem.

Perguntei porque nunca deixava-se filmar para entrevistas na TV. A resposta foi rápida: “Seu Zé, por acaso Platão foi filmado? Sócrates foi filmado??”...

Pois é, este é Elomar.

2 comentários:

Anônimo disse...

Coisa boa de ler. Fico muito feliz.quando me aparece qualquer informação sobre o Elomar, pessoa que gostaria muito de conhecer,e tão pouca informação temos sobre ele.

Carlos Almenara disse...


Lindo texto e mostra essa excelente pessoa brasileira que poucos conhecem e quem conhece valoriza demais.

Lança esse projeto por favor, que faço o mesmo sucesso que aquele CD inesquecível que é o Cantoria 1 de onde o conheci. Saudades da minha terra.