O motivo era nobre. Mas todos sabíamos tratar-se de desculpa para um passeio, no mínimo, inusitado.
Em 1980 éramos apenas um bando saindo da adolescência, os "velhos" do 3º colegial, último degrau da escala estudantil na pequena São Sebastião. Eu, entre 16 e 17 anos, talvez o mais novo. O restante não chegava a 19.
Classe pequena, menos de trinta alunos, já no momento de tomar decisões sobre o futuro. Os verdes anos estavam se acabando e as responsabilidades começavam a bater na porta. Nada que preocupasse tanto aquelas cabeças ainda leves, mas a verdade é que a gente sabia que a página iria virar, cedo ou tarde.
Por isso não titubeamos quando uma das alunas, a bela e loura Andréa Dalledonne veio com a proposta: seu namorado, médico chefe do hospital da cidade, estava à frente da
Campanha de Vacinação contra a Paralisia Infantil e precisava de voluntários para seguir até a remota ilha de
Montão de Trigo vacinar crianças ilhéus.
Partindo de barco a partir de Barra de Una a distância era "só" de 14 km, mas saindo do Centro de São Sebastião o percurso iria para além de 50 - ou pouco mais de duas horas navegando.
Irresistível. Pelo menos para os dez ousados que se candidataram, quantidade que, por sorte, foi a que coube no barco da Marinha, uma traineira de pesca adaptada requisitada para nos levar.
Logo pela manhã daquele sábado frio de junho lá estava ela no cais, à espera da "equipe de vacinação" (muito superior ao número de dois, suficiente para a missão).
E fomos embora. Fora um ou outro enjôo, viagem sem sobressaltos. Tempo bom, mar tranquilo, gaivotas nos escoltando.

Em pouco tempo já avistávamos, ao longe, nosso destino.

Primeira surpresa ao chegar próximo daquela montanha que se elevava, imponente, do mar: não havia praia para desembarcar, muito menos cais. A alternativa era aguardar os moradores locais virem nos buscar de canoa, ou, opção que os mais atléticos encararam, ir nadando até a costeira.


Na ilha, uma instigante, mas ao mesmo tempo cruel realidade: apenas 57 moradores, a maioria parentes entre si, descendentes de colonizadores que, na falta de contato frequente com o povo do continente, acabaram formando suas pobres famílias através de relacionamentos internos. Um grande risco, hoje se sabe.
A água, escassa; apenas uma bica de uma única fonte natural. Comida? Pescado e pequena agricultura. O que sobrava dos peixes tinha que ser levado rapidamente à costa para venda, gerando uns trocados para serem gastos no armazém próximo. Com isso, podiam levar de volta pra ilha alguns itens de luxo, como mantimentos e produtos de limpeza.
Enfim, uma população extremamente carente e, claro, abandonada pelas autoridades, com raras exceções - como a que motivou nossa viagem.
Noves fora esse lado triste, foi bem divertido, como tudo acaba sendo para garotos e garotas, caiçaras sim senhor. Primeiro o dever, crianças com a gotinha na boca; depois sol, mar e cerveja.
Montão de Trigo é lindíssima, lúdica e - porque não? - um tanto misteriosa. Largada lá no meio do Atlântico, solitária, nos fez sentir meio Crusoés ou Livingstones juvenis. Missionários corajosos, heróis anônimos.
Estes éramos nós, em São Sebastião, no sagrado ano de 1980.